As festas do Corpo de Deus, estão aí. São um bom pretexto para deixar aqui a letra de um “baile” que outrora se exibia pelas ruas de Penafiel: O Baile dos Sapateiros.
Não será grande novidade na medida que eu já tinha publicado no meu “Jornal 3 de Março” em Junho de 2001. Ainda assim, esta é uma forma de homenagear os sapateiros de Penafiel de outros tempos. Muitos elementos da minha família eram sapateiros: Meu pai e meu avô na Travessa dos Fornos, meu tio na Rua Direita, vários primos espalhados pela cidade. Não tenho foto do Baile dos Sapateiros, mas aqui fica uma foto da "Orquestra Jazz Albardófila" de que meu pai fazia parte.
O BAILE DOS SAPATEIROS
Marchavam os homens da dança em duas alas. Cada um deles apetrechado de cadeira de pau, martelo numa mão e ceira do ofício na outra, e vestiam camisola, avental, gorro, etc.
As alas eram fechadas por uma linha de pessoas que, claro está, marchavam pela mesma cadência e era constituída pelo mestre, contra-mestre, rapaz do pês e outra pessoa que levava a mesa de talhar e uma mulher com uma bandeja e cesta com flores. A mesa de talhar, onde o mestre cortava a obra com gestos, tinha em cima pregado um tacho de goma e um dispositivo com um fio até ao fundo da mesa, que mexido pela parte interna da mesma mesa, onde se escondia um rapaz, para este fim, fazia subir um rato que queria ir comer a goma.
A música era geralmente composta por um trombone, barítono, cornetim, requinta e clarinete. O número de figurantes variava, conforme os recursos monetários, mas nunca era inferior a 16: 12 oficiais, 6 de cada lado, mestre e contra-mestre e 2 rapazes.
Parado o grupo para se exibir o baile e tomadas as disposições convenientes, todos rompiam em coro:
“Cá vêm hoje os sapateiros
Sua dança apresentar,
Sempre alegres, prazenteiros,
Prontos para trabalhar.
Só queremos a esta festa
Dar mais animação
E por isso, agora resta
Que presteis vossa atenção.
Coro das facas: acompanhamento de cadência com facas batidas em atitude de amolar no pau de esmeril.
Nesta lida sempre lesta
Mais ou menos galhofeiros
P`ró trabalho já estão prestes
Os ladinos sapateiros.
Senhor mestre, sem parar
É geral o desafio.
Vamos facas amolar
Para todos cortar fio.
(estes versos repetiam-se duas vezes)
Mestre:
Senhor contra-mestre vamos!
Mãos à obra a trabalhar;
Os oficiais estão pasmados
E o freguês não quer esperar.
Contra- mestre:
Senhor mestre, não se aflija,
Faz-se tudo com canseira.
Porém nós não trabalhamos
À segunda e terça-feira.
À segunda e terça-feira
Corre tudo muito bem
E se vimos cá na quarta
É por não termos vintém.
Mestre:
Não sei como há-se ser isto
Que não vos posso aturar
O freguês não larga a porta
Por a obra perguntar.
Oficiais:
Senhor mestre a culpa é sua,
Deixe ralar-se o freguês.
Já temos as linhas feitas
Mande agora dar-nos os pês.
Mestre:
Ó rapaz vai buscar pês
Mas vai depressa a correr;
Tu não o metas no bolso
Que se pode derreter.
Oficiais:
Fura, fura o sapateiro
Toda a vida a trabalhar
Pois quem quer ganhar a vida
Toda a vida anda a penar.
Que maldita costumeira!
Isto assim não pode ser.
O rapaz não traz os pês
Não sabemos que fazer.
(Para o contra mestre):
Senhor contra-mestre veja
Como há-de isto agora ser.
Mande chamar o rapaz
Veja o que ele anda fazer.
(contra-mestre para o outro rapaz):
Anda cá ó meu rapaz.
Vai chamar aquele André.
Diz-lhe que quando chegar
Leva com o tira-pé.
Oficiais:
Dê-lhe bem com o tira-pé
Dê-lhe, dê-lhe até cansar.
Ou com este furador
Fure, fure até o matar.
Fura, fura sapateiro
Toda a vida a trabalhar
Pois quem quer ganhar a vida
Toda a vida anda a penar.
Que maldita costumeira
Isto assim não pode ser.
O rapaz não traz os pês
Não sabemos que fazer.
(Para o Mestre)
Senhor mestre é bom saber
Qual dos dois culpado é.
Afinal precisam ambos
Levar muito pontapé.
Mestre:
Senhor contra-mestre veja
Qual dos dois será culpado
Dê-lhe bem com o tira-pé
Até tocar a quebrado.
Contra-mestre:
Ambos são muito garotos
Sempre a jogar o botão
Vou-lhes dar com o tira-pé
Muita solha e safanão.
Oficiais:
Fura, fura o sapateiro
Toda a vida a trabalhar.
Pois quem quer ganhar a vida
Toda a vida anda a penar.
Que maldita costumeira
Isto assim não pode ser
O rapaz não traz o pês
Não sabemos que fazer.
(Mestre com os dois rapazes agarrados):
Aqui estão os dois rapazes,
Não os posso já aturar.
Com o botão os encontrei
Ambos a questionar.
1º rapaz (fazendo menção de tirar o pês do bolso):
Senhor mestre aqui está o pês
Mas não sei como o tirar
Foi aquele que me disse
Para o botão ir jogar.
2º rapaz:
Senhor mestre, senhor mestre
Este foi que me chamou.
Pôs a forma lá pró chão
E a jogar me convidou.
Mestre:
Não foi isso que vos disse
Não vos posso desculpar
E com este tira-pé
Ambos ides apanhar.
Nesta altura surge o rato do buraco do fundo da mesa em direcção do tacho da goma. E os dois rapazes num pulo, saltam para ele, e, agarrando-lhe o rabo exclamam com entusiasmo:
Senhor mestre, senhor mestre
Agarramos o daninho
Veja se os oficiais
Lhe vem tirar o focinho.
Mestre (mostrando grande confusão):
Acudi-me aqui rapazes
Que me vejo atrapalhado
Para matar este maldito
Que tanto me tem roubado.
Contra-mestre:
Eis o mestre atrapalhado
Vamos-lhe agora valer.
Esse grande bicharoco
Há-de agora aqui morrer.
(Oficiais de sovela em punho em atitude de espetar o bicharoco):
Mata, esfola, esfola e mata
Morra e morra o D. Ratão
Com trezentas soveladas
Que lhe entrem no coração.
(BIS)
Coro das facas. Acompanhamento de cadência com facas batidas em atitude de amolar no pau de esmeril:
Nesta lida sempre lesta
Mais ou menos galhofeiros
Pró trabalho já estão prestes
Os ladinos sapateiros.
Senhor mestre sem parar,
É geral o desafio.
Vamos as facas amolar
Para todos cortar fio.
(Estes versos repetiam-se duas vezes)
Mestre:
Senhor contra-mestre vamos
Mãos à obra trabalhar
Os oficiais estão pasmados
E o freguês não quer esperar.
Meus amigos obrigado
Vamos todos descansar
E o freguês arrenegado
Vá macacos pentear.
Oficiais:
Viva o mestre! Haja alegria.
Vivam todos em geral.
Uma dança neste dia
Não podia acabar mal.
A cadência de alguns destes coros era acompanhada de martelada sobre a malha, a bater a sola. Os gorros do mestre e contra-mestre, tinham uma bola pendente do centro por um fio, não faltando ao mestre o atributo próprio da idade: uns grandes óculos acavalados na ponta do nariz.
Como todas as outras danças, exibia-se primeiro à porta do município, na véspera do dia da festas, e ainda à porta de algumas autoridades. No dia da festa era para toda a gente que pagasse. Os oficiais levavam ainda o respectivo manículo para defender o dorso da mão direita dos vincos da linha.
Os sapateiros em Penafiel, não trabalhavam às segundas-feiras. Chamavam-lhe “o dia das almas”.
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